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Aprenda a ler e compreender a Bíblia

Por que interpretar a Bíblia é essencial?
Por que interpretar a Bíblia é essencial?

A Bíblia é o livro mais lido, traduzido e comentado da história — e também o mais mal interpretado. Muitos a leem como se fosse um texto direto, sem considerar que ela foi escrita em línguas antigas, por autores inspirados, em culturas distantes e em contextos históricos que já não existem. O resultado? Textos mal compreendidos, doutrinas distorcidas e aplicações equivocadas.

Interpretar corretamente a Escritura não é apenas uma questão de técnica, mas de reverência. A Bíblia é, ao mesmo tempo, um livro humano e divino: escrita por homens reais, mas inspirada por Deus. Por isso, exige de nós atenção ao contexto, sensibilidade espiritual e compromisso com a verdade revelada.

Nesta aula de Hermenêutica Bíblica, vamos explorar como superar os “distanciamentos” que nos separam da mensagem original — temporal, cultural, linguístico e espiritual — e aprender a ouvir com clareza a voz de Deus que continua falando por meio das Escrituras.

Prepare-se para mergulhar em um estudo que une razão e fé, história e revelação, letra e espírito. Vamos juntos compreender a mensagem divina.

Esta aula integra o programa de Hermenêutica Bíblica do Seminário Enoikeo, promovido por nossa igreja, com o propósito de formar intérpretes fiéis da Palavra de Deus.  

📚 Hermenêutica Bíblica – Aula 2

Tema: Compreendendo a Mensagem Divina  

Objetivo: Ajudar os alunos a interpretar a Bíblia de forma correta, entendendo que ela é ao mesmo tempo um livro humano e divino, e que por isso precisamos superar alguns “distanciamentos” para compreender sua mensagem.  

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1. Por que precisamos interpretar a Bíblia?

A Bíblia não foi escrita em nosso tempo, nem na nossa cultura, nem no nosso idioma. Ela nasceu em contextos muito diferentes dos nossos: povos antigos, línguas como hebraico, aramaico e grego, e situações políticas e sociais que já não existem mais. Se simplesmente pegarmos o texto e lermos sem considerar isso, corremos o risco de entender errado.  

Exemplo: Mateus 5:39

> “Eu, porém, vos digo: não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra.”  

- Exegese: O verbo grego usado é ῥαπίζω (rhapízō), que significa “esbofetear com a mão aberta”. O detalhe “face direita” sugere um tapa dado com as costas da mão, gesto de insulto e humilhação pública, mais do que violência física.  

- Aplicação: Jesus não está ensinando passividade diante da injustiça, mas sim a quebrar o ciclo da vingança e responder ao insulto com dignidade e domínio espiritual.  

Esse exemplo mostra a importância da hermenêutica: a ciência e a arte de interpretar corretamente a Bíblia, buscando entender o que o autor quis dizer e o que Deus quer nos ensinar.  

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2. As duas naturezas da Bíblia

A Bíblia: natureza humana e natureza divina

A Bíblia é um livro singular. Diferente de qualquer outra obra, ela une em si duas dimensões inseparáveis: a humana e a divina.  

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A. A natureza humana da Bíblia

A Bíblia foi escrita por pessoas reais, em épocas e lugares específicos, usando estilos literários próprios. Isso significa que:  

- Contexto histórico: Cada livro reflete a realidade do seu tempo. Por exemplo, os profetas falam em meio a crises políticas de Israel e Judá; Paulo escreve cartas a comunidades cristãs do primeiro século, enfrentando problemas concretos.  

- Estilo literário: Moisés escreve leis e narrativas; Davi compõe salmos poéticos; Lucas escreve como historiador detalhista; João usa linguagem simbólica e teológica.  

- Línguas humanas: O Antigo Testamento foi escrito em hebraico (com partes em aramaico) e o Novo Testamento em grego koiné, a língua comum do império romano.  

- Exemplo bíblico: Lucas 1:1–4 mostra claramente a pesquisa histórica e o cuidado humano do autor: “Havendo muitos empreendido compor uma narração... também a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito...”  

👉 Isso nos lembra que, para interpretar corretamente, precisamos considerar história, cultura, língua e intenção do autor.  

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B. A natureza divina da Bíblia

Ao mesmo tempo, a Bíblia não é apenas um livro humano. Ela é inspirada por Deus.  

- Inspiração: 2 Timóteo 3:16 declara: “Toda a Escritura é inspirada por Deus...” O termo grego é theopneustos, que significa “soprada por Deus”.  

- Autoridade: Embora escrita por homens, a mensagem é de Deus. Pedro afirma: “Homens falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (2 Pedro 1:21).  

- Unidade: Apesar de ter sido escrita por cerca de 40 autores diferentes, em mais de 1.500 anos, a Bíblia apresenta uma mensagem coerente: a revelação de Deus culminando em Cristo.  

- Eternidade: Isaías 40:8 diz: “Seca-se a erva, cai a sua flor, mas a palavra de nosso Deus permanece eternamente.”  

👉 Isso nos lembra que, ao ler a Bíblia, não estamos apenas diante de um documento histórico, mas diante da voz viva de Deus.  

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C. O mistério da união entre humano e divino

Essa união entre o humano e o divino na Escritura é semelhante ao mistério da encarnação de Cristo:  

- Jesus é plenamente homem e plenamente Deus.  

- A Bíblia é plenamente humana (escrita em contextos reais) e plenamente divina (inspirada pelo Espírito).  

Os reformadores chamavam isso de “accomodatio” (acomodação): Deus se “abaixa” para falar conosco em linguagem humana, sem perder Sua autoridade divina.  

- João Calvino dizia que Deus “fala conosco como uma mãe fala com seu bebê, balbuciando para que possamos entender”.  

- Agostinho afirmava: “A Escritura é a carta de amor de Deus para nós, escrita em linguagem humana para que pudéssemos compreender.”  

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D. Implicações para a interpretação

Se a Bíblia é humana e divina, isso significa que precisamos de duas atitudes complementares:  

1. Estudo diligente – analisar contexto, cultura, língua, gênero literário.  

2. Dependência espiritual – orar, pedir iluminação ao Espírito Santo, submeter-se à Palavra.  

Sem o estudo, corremos o risco de distorcer o texto.  

Sem o Espírito, corremos o risco de tratá-lo como mera literatura.  

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🌟 Conclusão

A Bíblia é um livro único porque une o humano e o divino.  

- Humana: escrita por pessoas reais, em contextos específicos.  

- Divina: inspirada por Deus, eterna em sua mensagem.  

Por isso, ao abrirmos a Escritura, precisamos de olhos atentos para compreender o contexto humano e de corações humildes para ouvir a voz de Deus.  

2.1. A Natureza Humana da Bíblia

A Bíblia foi escrita por pessoas reais, em épocas, culturas e línguas diferentes das nossas. Isso significa que, ao lermos, enfrentamos barreiras naturais de compreensão, chamadas de distanciamentos humanos. Vamos analisá-los um a um.  

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2.1.1. Distanciamento Temporal

Explicação:  

A Bíblia foi escrita há milhares de anos. O tempo cria uma barreira porque muitas práticas, instituições e costumes já não existem. O que era óbvio para os leitores originais pode soar estranho ou até sem sentido para nós.  

Exemplo Bíblico:  

- Levítico 11:7 – “Também o porco, porque tem unhas fendidas, mas não rumina, este vos será imundo.”  

- Exegese: A palavra hebraica ṭāmē’ significa “impuro, impróprio para uso sagrado”. As leis dietéticas tinham função de identidade (separar Israel das nações) e também de saúde pública, já que o porco podia transmitir doenças em um tempo sem refrigeração ou higiene adequada.  

- Aplicação: Hoje, não seguimos essas leis literalmente, mas aprendemos o princípio: o povo de Deus deve viver de forma distinta, refletindo santidade.  

Ilustração:  

Assim como uniformes distinguem soldados de diferentes exércitos, as leis dietéticas distinguiam Israel das nações vizinhas.  

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2.1.2. Distanciamento Contextual

Explicação:  

O contexto social, político e religioso da época bíblica era muito diferente do nosso. Sem entender esse pano de fundo, corremos o risco de interpretar mal.  

Exemplo Bíblico:  

- Mateus 23:27 – “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! Pois sois semelhantes aos sepulcros caiados...”  

- Exegese: A palavra grega ὑποκριταί – hypokritai era usada para atores de teatro que usavam máscaras. Jesus denuncia a religiosidade de fachada: aparência de santidade por fora, mas corrupção por dentro.  

- Aplicação: Sem o contexto, parece apenas um insulto. Com a exegese, entendemos que Jesus está condenando a incoerência espiritual.  

Ilustração:  

É como uma parede recém-pintada que por dentro está cheia de rachaduras.  

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2.1.3. Distanciamento Cultural

Explicação:  

Os costumes da época bíblica eram diferentes dos nossos. Muitas práticas sociais, familiares e religiosas não fazem parte da nossa cultura atual.  

Exemplo Bíblico:  

- Gênesis 18:1–8 – Abraão recebe três visitantes e lhes oferece comida e descanso.  

- Exegese: Na cultura semita, a hospitalidade era questão de honra e sobrevivência. Negar abrigo a um viajante era quase condená-lo à morte.  

- Aplicação: Hoje, hospitalidade é cortesia; naquela época, era obrigação moral. O princípio permanece: acolher o próximo é sinal de fé viva.  

Ilustração:  

Enquanto hoje oferecemos café a uma visita, Abraão mata um novilho inteiro para honrar seus hóspedes.  

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2.1.4. Distanciamento Linguístico

Explicação:  

A Bíblia foi escrita em hebraico, aramaico e grego. Muitas palavras têm significados que não aparecem totalmente em português. Uma única palavra pode carregar nuances que se perdem na tradução.  

Exemplo Bíblico:  

- 1 Coríntios 13:4 – “O amor é paciente, é benigno...”  

- Exegese: A palavra usada é ἀγάπη – agápē, que significa amor sacrificial, incondicional, diferente de ἔρως – érōs (amor erótico) e φιλία – philía (amizade).  

- Aplicação: Quando Paulo fala de amor, não é emoção passageira, mas entrega sacrificial.  

Ilustração:  

Em português, usamos “amor” para tudo: “amo pizza” e “amo minha mãe”. No grego, cada tipo de amor tinha uma palavra específica.  

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2.1.5. Distanciamento Autoral

Explicação:  

Cada autor bíblico tinha seu estilo, vocabulário e intenção. Ignorar isso pode levar a interpretações superficiais.  

Exemplo Bíblico:  

- Lucas 1:1–4 – “Havendo muitos empreendido compor uma narração...”  

- Exegese: Lucas usa o termo ἀκριβῶς – akrivōs, que significa “com precisão, exatidão”. Ele se apresenta como historiador cuidadoso.  

- Aplicação: Isso mostra que cada autor bíblico tinha estilo próprio, mas todos foram inspirados por Deus.  

Ilustração:  

É como comparar um jornalista detalhista (Lucas) com um poeta (João). Ambos falam a verdade, mas com estilos diferentes.  

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🌟 Conclusão sobre a Natureza Humana

Os distanciamentos humanos (temporal, contextual, cultural, linguístico e autoral) nos lembram que a Bíblia não caiu pronta do céu em português, mas foi escrita em épocas, culturas e línguas diferentes.  

- Para compreendê-la, precisamos estudar o contexto histórico, entender os costumes, analisar as palavras originais e respeitar o estilo de cada autor.  

- Isso não diminui a autoridade da Bíblia, mas nos ajuda a ouvir com mais clareza a voz de Deus que falou no passado e continua falando hoje.  

2.2. Natureza Divina

Além dos aspectos humanos, a Bíblia também é Palavra de Deus. Isso cria outros tipos de distanciamentos:  

📖 Distanciamentos ligados à natureza divina da Bíblia

Quando falamos da natureza divina da Escritura, reconhecemos que ela é a Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo (2Tm 3:16). Isso significa que, embora escrita em linguagem humana, sua origem e conteúdo são divinos. Essa dimensão cria barreiras adicionais para a interpretação, que chamamos de distanciamentos divinos.  

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2.2.1. Distanciamento natural – Deus é infinito, nós somos finitos

- Explicação: A mente humana é limitada. Deus é eterno, infinito, transcendente. Por isso, mesmo quando Ele se revela em palavras humanas, há sempre um abismo entre a grandeza de Deus e nossa capacidade de compreensão.  

- Exegese: Isaías 55:8–9 – “Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor. Porque assim como os céus são mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos.”  

  - O hebraico usa גָּבֹהַּ – gāḇōah (“elevado, inacessível”), mostrando que os pensamentos de Deus estão em outra esfera.  

- Citação Reformada: João Calvino, nas Institutas (I.13.1), afirma que Deus “fala conosco em linguagem infantil” (accommodatio), adaptando-se à nossa fraqueza para que possamos compreender algo de Sua verdade.  

- Pai da Igreja: Irineu de Lião dizia que “Deus é sempre maior do que aquilo que podemos pensar ou dizer d’Ele” (Adversus Haereses II, 28).  

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2.2.2. Distanciamento espiritual – o homem natural não entende as coisas do Espírito

- Explicação: A Bíblia é um livro espiritual. Não basta inteligência ou erudição; é necessário o Espírito Santo para iluminar o coração.  

- Exegese: 1 Coríntios 2:14 – “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente.”  

  - Paulo usa ψυχικὸς ἄνθρωπος – psychikos anthrōpos, o “homem natural”, guiado apenas pela alma, sem o Espírito.  

- Natureza caída: Desde a queda (Gn 3), nossa mente foi obscurecida. Efésios 4:18 descreve os homens como “entenebrecidos no entendimento”. Sem regeneração, não conseguimos compreender a Palavra de Deus em sua profundidade.  

- Citação Reformada: Martinho Lutero, em De Servo Arbitrio (Da Vontade Cativa), ensina que a vontade humana está escravizada pelo pecado e incapaz de buscar a Deus por si mesma.  

- Pai da Igreja: Agostinho, em Confissões (X, 27), reconhece: “Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova... Estavas dentro de mim, e eu fora.” Ele mostra que só pela graça e iluminação interior é possível conhecer a Deus.  

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2.2.3. Distanciamento moral – nossa ética é corrompida, a de Deus é santa

- Explicação: Muitas vezes, não entendemos a Bíblia porque ela confronta nossa moralidade caída. O pecado não apenas obscurece a mente, mas também endurece o coração.  

- Exegese: Jonas 4:2 – Jonas se ira porque Deus perdoa Nínive.  

  - O profeta sabia que Deus é חַנּוּן – ḥannûn (gracioso) e רַחוּם – raḥûm (misericordioso), mas não aceitava que essa graça fosse estendida aos inimigos.  

- Natureza caída: Romanos 8:7 – “A inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeita à lei de Deus, nem mesmo pode estar.”  

- Citação Reformada: João Owen, em A Morte da Morte na Morte de Cristo, afirma que a mente carnal é incapaz de se submeter à vontade de Deus sem a obra regeneradora do Espírito.  

- Pai da Igreja: Crisóstomo, em suas homilias, dizia que “a Escritura é clara, mas o coração humano é escuro; não é a Palavra que é difícil, mas o pecado que nos cega.”  

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🌟 Conclusão dos distanciamentos divinos

- Natural: Deus é infinito, nós somos finitos.  

- Espiritual: O homem natural não entende as coisas do Espírito.  

- Moral: Nossa natureza caída resiste à vontade de Deus.  

Por isso, a hermenêutica não é apenas um exercício intelectual. É também um ato espiritual, que exige humildade, dependência do Espírito Santo e transformação moral.  

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✨ Aplicação prática 

1. Reconheça sua limitação: não tente dominar a Bíblia como se fosse apenas um livro de história.  

2. Ore pedindo iluminação: antes de estudar, peça ao Espírito Santo que abra seus olhos (Sl 119:18).  

3. Submeta-se à Palavra: não apenas entenda, mas deixe-se transformar por ela.  

4. Lembre-se: a dificuldade não está apenas no texto, mas em nossa natureza caída.  

3. Superando os distanciamentos

A Bíblia é um livro humano e divino. Por isso, ao mesmo tempo em que precisamos estudar seu contexto histórico, cultural e linguístico, também precisamos da iluminação do Espírito Santo. A hermenêutica nos dá ferramentas para superar os distanciamentos e compreender a mensagem eterna de Deus.  

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3.1. Distanciamento histórico-cultural

Explicação:  

Esse distanciamento acontece porque a Bíblia foi escrita em um tempo e em uma cultura muito diferentes das nossas. As práticas políticas, sociais e religiosas do mundo bíblico não são as mesmas de hoje. Se não entendermos o contexto histórico-cultural, podemos interpretar mal o texto.  

Texto: Mateus 22:15–22 – “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”  

Contexto:  

Os fariseus e herodianos tentaram armar uma armadilha para Jesus, perguntando se era lícito pagar imposto a César. Se Ele dissesse “não”, seria acusado de rebelião contra Roma. Se dissesse “sim”, seria acusado de traição contra o povo judeu.  

Exegese:  

- O imposto era pago com um denário, moeda romana que trazia a inscrição: “Tibério César, filho do divino Augusto”.  

- Para os judeus, essa inscrição era blasfema, pois atribuía divindade ao imperador.  

- Jesus pede a moeda e responde: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”  

Aplicação:  

- Jesus não se deixa prender pela armadilha. Ele mostra que existe uma esfera legítima de autoridade civil (César), mas que a autoridade suprema pertence a Deus.  

- A moeda leva a imagem de César, mas o ser humano leva a imagem de Deus (Gn 1:27). Portanto, devemos dar a César os impostos, mas a Deus a nossa vida.  

Ilustração:  

É como se Jesus dissesse: “O que tem a marca de César, devolvam a César. Mas o que tem a marca de Deus (vocês mesmos), entreguem a Deus.”  

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3.2. Distanciamento linguístico

Explicação:  

Esse distanciamento existe porque a Bíblia foi escrita em línguas antigas (hebraico, aramaico e grego). Muitas palavras carregam significados que não aparecem totalmente em português. Sem conhecer essas nuances, podemos perder a profundidade do texto.  

Texto: João 3:16 – “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito...”  

Exegese:  

- O verbo grego usado é ἠγάπησεν – ēgapēsen, do substantivo ἀγάπη – agápē. Esse amor não é paixão (érōs) nem amizade (philía), mas amor sacrificial, que busca o bem do outro sem esperar retorno.  

- A palavra κόσμος – kosmos significa mais do que “planeta Terra”. No evangelho de João, muitas vezes se refere à humanidade caída, em rebelião contra Deus (Jo 1:10; 7:7).  

Aplicação:  

- O texto não fala de um amor sentimental, mas de um amor ativo, que se doa.  

- Deus não amou um mundo “bonito e justo”, mas um mundo perdido, hostil e pecador.  

- Isso mostra a profundidade da graça: Deus ama não porque somos amáveis, mas porque Ele é amor (1Jo 4:8).  

Ilustração:  

É como alguém que ama um inimigo e entrega o que tem de mais precioso para salvá-lo. Esse é o amor de Deus revelado em Cristo.  

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3.3. Uso de ferramentas hermenêuticas

Explicação:  

Mesmo estudando o contexto histórico e as línguas originais, ainda precisamos de ferramentas auxiliares para aprofundar a interpretação. Comentários bíblicos, dicionários, enciclopédias e estudos acadêmicos nos ajudam a compreender melhor o texto e a evitar interpretações superficiais ou equivocadas.  

Texto: Hebreus 4:12 – “Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes...”  

Exegese:  

- O termo grego é μάχαιρα δίστομος – machaira distomos.  

- Machaira era uma espada curta, usada em combate corpo a corpo, afiada dos dois lados.  

- A imagem mostra que a Palavra de Deus é precisa, penetrante e capaz de atingir o íntimo do ser humano.  

Aplicação:  

- A Palavra não é apenas informação, mas instrumento de transformação.  

- Ela discerne intenções e motivações, revelando o que está escondido no coração.  

- Por isso, precisamos lê-la não apenas como estudo, mas como encontro com o Deus vivo.  

Ilustração:  

Assim como um bisturi corta com precisão para curar, a Palavra de Deus corta para expor e restaurar.  

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🌟 Conclusão

Superar os distanciamentos significa:  

- Histórico-cultural: entender o contexto da época para captar o sentido original.  

- Linguístico: estudar as palavras originais para perceber a riqueza do texto.  

- Ferramentas: usar comentários, dicionários e recursos que nos ajudem a ir além da leitura superficial.  

A hermenêutica, portanto, não é apenas um exercício acadêmico, mas um caminho para ouvir a voz de Deus com clareza, aplicando Sua Palavra à nossa vida hoje.

4. Correntes Teológicas de Interpretação

Ao longo da história da Igreja, diferentes correntes teológicas desenvolveram maneiras distintas de interpretar a Bíblia. Conhecê-las nos ajuda a discernir quais caminhos são fiéis à revelação divina e quais podem nos afastar da verdade.  

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4.1. Corrente Espiritualista

Ênfase:  

Valoriza o simbolismo e a experiência espiritual. Para essa visão, a Escritura não deve ser lida apenas como história ou doutrina, mas como mensagem espiritual que aponta para realidades eternas.  

- Exemplo: Apocalipse 21 – a Nova Jerusalém é vista como símbolo da Igreja glorificada.  

- Força: Lembra que a Bíblia não é apenas letra, mas espírito (2Co 3:6).  

- Risco: Se isolada, pode cair em alegorização excessiva, afastando-se do sentido original.  

Citação:  

Orígenes (séc. III) dizia: “As Escrituras são como um corpo, uma alma e um espírito. O corpo é o sentido literal, a alma é o moral, e o espírito é o espiritual.”  

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4.2. Corrente Humanista

Ênfase:  

Valoriza o aspecto histórico, cultural e social da Bíblia. Entende a Escritura como fruto da experiência humana com Deus, marcada pelo contexto em que foi escrita.  

- Exemplo: Êxodo – visto como narrativa de libertação social e política.  

- Força: Ressalta que a Bíblia nasceu em contextos reais de opressão, luta e esperança.  

- Risco: Se isolada, pode reduzir a Bíblia a um documento histórico ou político, perdendo sua dimensão divina.  

Citação:  

F. F. Bruce (século XX): “A Bíblia não foi escrita para satisfazer a curiosidade acadêmica, mas para guiar homens e mulheres em sua relação com Deus, dentro da história.”  

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4.3. Corrente Reformada (Ortodoxa)

Ênfase:  

A Reforma Protestante (séc. XVI) resgatou a centralidade da Escritura como Palavra de Deus. A corrente reformada afirma que a Bíblia é clara, suficiente, inerrante e infalível, e só pode ser corretamente compreendida com a iluminação do Espírito Santo.  

- Exemplo: Toda a Escritura deve ser interpretada pela própria Escritura (princípio da Sola Scriptura).  

- Força: Mantém o equilíbrio entre estudo humano (história, línguas, contexto) e dependência espiritual.  

- Risco: Se mal aplicada, pode se tornar rígida ou dogmática, mas sem jamais negar a autoridade da Palavra.  

Citações Reformadas:  

- João Calvino (Institutas, I.7.4): “A Escritura traz em si mesma plena evidência de sua autoridade, e não deve ser confirmada pelo julgamento da Igreja. Pois a Igreja é edificada sobre a Palavra, não a Palavra sobre a Igreja.”  

- Louis Berkhof (Princípios de Interpretação Bíblica): “O método gramático-histórico é o único que faz justiça à dupla natureza da Escritura: divina em sua origem, humana em sua forma.”  

- Augustus Nicodemus (contemporâneo): “As Escrituras são divinas em sua origem, infalíveis e inerrantes no que ensinam, seguras e certas no seu ensino. Tudo o que é necessário à salvação e à vida cristã está claramente revelado na Escritura.”  

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4.4. O perigo da leitura liberal

Explicação:  

A chamada “teologia liberal” surgiu no século XIX e ganhou força no século XX. Ela busca adaptar a Bíblia ao pensamento moderno, muitas vezes negando sua inspiração plena, sua inerrância e sua infalibilidade.  

- Características da leitura liberal:  

  - Vê a Bíblia apenas como um livro humano, sujeito a erros.  

  - Relativiza milagres, profecias e a historicidade de muitos relatos.  

  - Interpreta Cristo mais como exemplo moral do que como Salvador divino.  

  - Adota uma postura inclusivista, negando que Jesus seja o único caminho para Deus (Jo 14:6).  

Perigo:  

Essa leitura mina a confiança na Escritura como Palavra de Deus. Como alerta Augustus Nicodemus, a leitura liberal é fruto da pós-modernidade, que rejeita verdades absolutas e trata a Bíblia como apenas mais um texto religioso.  

Citação:  

- B. B. Warfield (teólogo reformado de Princeton): “Se a Bíblia não é a Palavra de Deus em sua totalidade, então não é a Palavra de Deus em parte alguma.”  

- J. I. Packer (século XX): “Negar a inerrância é abrir a porta para que cada um se torne juiz da Escritura, escolhendo o que aceitar e o que rejeitar.”  

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🌟 Conclusão

A Bíblia é um livro único: ao mesmo tempo humano e divino.  

- Do lado humano, estudamos história, cultura, língua e contexto.  

- Do lado divino, dependemos do Espírito Santo para iluminar nosso entendimento.  

As correntes de interpretação nos lembram que a Bíblia pode ser lida sob diferentes perspectivas. Mas a leitura ortodoxa e reformada é a que preserva a autoridade da Escritura como Palavra inspirada, inerrante e infalível.  

O maior risco hoje não é apenas a perseguição contra a Igreja, mas a assimilação liberal, que trata a Bíblia como qualquer outro livro e nega sua autoridade divina.  

A hermenêutica reformada é a ponte segura que nos ajuda a atravessar os distanciamentos e ouvir hoje a mensagem eterna de Deus.  


Pr. Niger Martins


 
 
 

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