Por que Deus permite o mal? Causas secundárias e o problema do mal sob uma perspectiva bíblico-exegética ortodoxa
- INV É de Deus

- 9 de out.
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As causas secundárias e o problema do mal sob uma perspectiva bíblico-exegética ortodoxa
I. Introdução
A pergunta “Por que um Deus bom e todo-poderoso permite o mal?” é uma das mais antigas e profundas da teologia cristã. A tradição ortodoxa oferece uma resposta robusta ao afirmar que Deus governa todas as coisas como causa primeira, mas o faz por meio de causas secundárias reais — agentes, processos e leis criadas — sem ser autor do mal. Essa doutrina preserva a santidade divina, a responsabilidade humana e a integridade da criação, ao mesmo tempo em que afirma a soberania absoluta de Deus.
Este artigo desenvolve o conceito de causas secundárias na providência divina, articulando exegese de textos-chave, distinções técnicas (como concursus e compatibilismo), e testemunhos da tradição reformada e dos pais da Igreja. A tese central é que Deus, como causa primeira, governa todas as coisas por meio de causas secundárias reais, sem eliminar a liberdade das criaturas nem imputar a Ele o mal moral, garantindo o cumprimento sábio de seus decretos eternos.
II. Quadro Conceitual Técnico da Providência Reformada
A teologia reformada da providência distingue cuidadosamente entre diferentes níveis causais para explicar como Deus age soberanamente no mundo sem ser autor do pecado. Essa estrutura permite afirmar a soberania absoluta de Deus e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade e responsabilidade das criaturas. A seguir, apresentamos os principais conceitos que sustentam essa doutrina:
1. Causa Primeira
Deus é a causa primeira de tudo o que existe e acontece. Isso significa que Ele é o fundamento último da realidade, aquele que decreta, sustenta e dirige todas as coisas com sabedoria e poder.
📖 “Ele sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1:3); “Nele tudo subsiste” (Cl 1:17).
🔍 Na teologia reformada, esse conceito não implica que Deus seja o autor direto de todas as ações, mas que nada ocorre fora de seu governo soberano. Ele é o iniciador e mantenedor da ordem criada.
2. Causas Secundárias
As causas secundárias são os meios reais pelos quais Deus realiza seus propósitos no mundo. Isso inclui pessoas, decisões humanas, leis naturais, instituições sociais e eventos históricos.
🔍 Embora Deus seja a causa última, Ele normalmente age por meio de causas secundárias, que são eficazes e moralmente responsáveis. Por exemplo, um médico que cura, um juiz que julga, ou um vento que destrói — todos são instrumentos reais usados por Deus.
📌 Essa distinção evita o ocasionalismo (que nega a eficácia das causas criadas) e sustenta a integridade da criação.
3. Concursus (Concurso Divino)
O termo concursus, derivado do latim concurrere (“correr junto”), designa a doutrina segundo a qual Deus coopera continuamente com as ações das criaturas. Trata-se de uma participação divina que não anula a liberdade da criatura, mas a sustenta e dirige sem violação de sua natureza ou imputação do mal a Deus.
Na teologia reformada, o concursus é entendido como a forma pela qual Deus age simultaneamente com os agentes criados em todos os seus atos — tanto ordinários quanto extraordinários. Deus não apenas preserva o ser da criatura, mas também garante a eficácia de suas ações, sem que isso implique coerção ou causalidade moral do pecado.
Por exemplo, quando uma pessoa decide voluntariamente ajudar alguém em necessidade, essa ação é plenamente humana e livre. Contudo, segundo o concursus, Deus está operando junto com ela — não forçando sua escolha, mas sustentando sua capacidade de agir e providencialmente integrando esse gesto ao seu plano maior de redenção e cuidado.
A tradição reformada distingue essa cooperação divina em duas formas principais:
- Concursus geral: refere-se à sustentação universal do ser e da ação das criaturas. Deus concede existência, energia e capacidade de agir a todos os seres, em todos os momentos.
- Concursus especial: refere-se à direção intencional de atos específicos para o cumprimento dos propósitos divinos. Aqui, Deus não apenas sustenta, mas também orienta determinadas ações para fins redentores, sem violar a liberdade da criatura.
Essa distinção permite afirmar que Deus é soberano sobre toda a história, sem ser autor do pecado, e que as criaturas são agentes reais e responsáveis dentro da ordem providencial estabelecida por Ele.
Vamos aprofundar:
3.1 Concursus geral — preservação do ser e da ação
Este é o tipo de concursus que ocorre em todo e qualquer ato das criaturas, mesmo os mais simples e naturais. Deus sustenta o ser da criatura e a capacidade de agir. Sem essa sustentação, nada existiria ou funcionaria.
📖 “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17:28).
📖 “Ele sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder” (Hb 1:3).
🔍 Exemplo:
Quando uma pessoa respira, pensa ou caminha, Deus está sustentando sua existência e energia vital. A ação é da criatura, mas a possibilidade de agir vem de Deus.
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3.2 Concursus especial — direção de atos específicos
Este tipo de concursus ocorre quando Deus não apenas sustenta, mas também dirige intencionalmente certos atos para cumprir seus propósitos específicos. Ele age de forma mais direta, sem violar a liberdade da criatura, mas garantindo que o resultado final esteja alinhado com seu plano eterno.
📖 “O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos” (Pv 16:9).
📖 “O coração do rei é como um rio nas mãos do Senhor; Ele o inclina para onde quer” (Pv 21:1).
🔍 Exemplo:
Imagine que uma pessoa decide ajudar um vizinho em necessidade. Essa decisão é livre e voluntária, fruto da compaixão humana. No entanto, Deus está operando junto com ela — não forçando sua escolha, mas guiando-a providencialmente para que esse ato de bondade contribua para um bem maior, como consolo, testemunho ou resposta a oração.
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📌 Em resumo:
- No concursus geral, Deus sustenta o ato.
- No concursus especial, Deus dirige o ato.
- Em ambos os casos, a criatura age de forma real e responsável, e Deus permanece soberano.
📌 Essa doutrina mostra que Deus não é passivo nem ausente, mas ativo em cada detalhe da história, sem eliminar a agência das criaturas.
4. Compatibilismo
O compatibilismo é a afirmação de que a soberania divina e a responsabilidade humana coexistem sem contradição. Os seres humanos agem voluntariamente, segundo suas intenções e desejos, e Deus realiza seus propósitos através dessas ações.
🔍 A Bíblia mostra isso claramente em textos como Atos 2:23, onde a crucificação de Cristo é atribuída ao “conselho determinado de Deus” e, ao mesmo tempo, à culpa dos homens que o executaram.
📌 Essa visão evita tanto o determinismo fatalista quanto o livre-arbítrio libertário, mantendo a tensão bíblica entre providência e liberdade.
5. Vontade Decretiva vs. Permissiva
A vontade decretiva de Deus é aquela pela qual Ele ordena positivamente tudo o que acontece, especialmente o bem. Já a vontade permissiva é aquela pela qual Deus permite que o mal ocorra, sem causá-lo diretamente, mas com fins justos e sábios.
🔍 Deus não deseja o mal como fim, mas permite sua ocorrência para cumprir propósitos maiores — como a formação do caráter, o juízo justo ou a revelação da graça.
📖 “Vocês intentaram o mal contra mim, mas Deus o tornou em bem” (Gn 50:20); “Deus não tenta ninguém” (Tg 1:13).
📌 A permissão divina é ativa, sábia e limitada. Deus estabelece fronteiras para o mal e o redireciona para o bem, como vemos no livro de Jó.
III. Implicações teológicas
A doutrina das causas secundárias tem implicações profundas para a teologia sistemática, a ética cristã e a vida pastoral:
- Preserva a santidade de Deus: Ao distinguir entre causa primeira e causas secundárias, evita-se atribuir a Deus a autoria do pecado (cf. Tg 1:13).
- Afirma a responsabilidade humana: Os agentes secundários são moralmente responsáveis por suas ações, mesmo quando Deus as usa para cumprir seus propósitos (cf. At 2:23; Gn 50:20).
- Explica a providência ordinária: Deus age por meios naturais e históricos, como governos, médicos, conselhos e decisões humanas, sem deixar de ser soberano.
- Oferece consolo no sofrimento: Mesmo o mal e a dor são redirecionados por Deus para fins redentores (cf. Rm 8:28), sem que Ele os tenha causado moralmente.
- Fundamenta a esperança escatológica: A permissão do mal é temporária; Deus promete restaurar todas as coisas e eliminar definitivamente o sofrimento (cf. Ap 21:4).
📖 III. Exegese bíblica de textos-chave
1. Gênesis 50:20 — Dupla agência: intenção humana e designio divino
Texto hebraico:
וְאַתֶּם חֲשַׁבְתֶּם עָלַי רָעָה אֱלֹהִים חֲשָׁבָהּ לְטֹבָה
Transliteração:
Ve’atem chashavtem alai ra’ah; Elohim chashavah le-tovah.
Tradução literal:
“Vós intentastes contra mim o mal; Deus o intentou para o bem.”
Exegese:
- חֲשַׁבְתֶּם (chashavtem): “Vocês planejaram” — ação deliberada dos irmãos de José.
- רָעָה (ra’ah): “Mal” — dano moral e físico.
- חֲשָׁבָהּ (chashavah): “Planejou” — mesmo verbo usado para Deus, indicando soberania ativa.
- לְטֹבָה (le-tovah): “Para o bem” — finalidade redentora.
📌 O texto de Gênesis 50:20 é uma das expressões mais claras da doutrina reformada das causas secundárias e da compatibilidade entre soberania divina e responsabilidade humana. Nele, José afirma: “Vós intentastes contra mim o mal; Deus o intentou para o bem.” Essa declaração não é apenas uma reflexão pessoal sobre o sofrimento, mas uma revelação teológica profunda sobre como Deus governa a história.
A mesma ação — a venda de José como escravo — possui dois agentes distintos com intenções opostas:
- Os irmãos de José agiram movidos por inveja, ódio e egoísmo. Sua intenção era prejudicar, humilhar e eliminar o irmão. Eles são, portanto, causas secundárias morais, plenamente responsáveis por seu pecado.
- Deus, por outro lado, não causou o mal moral, mas planejou soberanamente que esse evento fosse usado como meio de preservação da vida de muitos, inclusive dos próprios irmãos. Ele é a causa primeira providencial, que dirige a história sem ser autor do pecado.
O verbo hebraico usado para ambos — חָשַׁב (chashav), “planejar” ou “intencionar” — é o mesmo, o que reforça a ideia de que a ação é compartilhada, mas a motivação e o propósito são radicalmente diferentes. Deus não apenas “permitiu” o mal, mas o reconfigurou teleologicamente para um fim redentor: “para conservar muita gente com vida” (Gn 50:20b).
Essa estrutura revela a compatibilidade entre providência e liberdade:
- Deus é soberano: nada escapa ao seu plano eterno.
- Os homens são livres e responsáveis: suas escolhas são reais e moralmente imputáveis.
- O mal não é desejado por Deus, mas é subordinado à sua sabedoria, que o transforma em instrumento de bem.
📌 Teologicamente, isso refuta tanto o determinismo fatalista (que elimina a liberdade humana) quanto o teísmo aberto (que limita a soberania divina). A tradição reformada sustenta que Deus governa por meio de causas secundárias reais, sem violar a vontade das criaturas, e sem ser autor do pecado.
📖 Gênesis 50:20, portanto, não é apenas um consolo para o sofrimento passado, mas uma chave hermenêutica para interpretar toda a história da redenção: o mal humano é real, mas nunca é final. Deus o redime, o limita e o transforma — sem perder sua santidade, sem anular nossa responsabilidade.
2. Isaías 10:5–7 — Assíria como instrumento, mas culpável
Texto hebraico:
הוֹי אַשּׁוּר שֵׁבֶט אַפִּי... וְהוּא לֹא כֵן יַחְשֹׁב
Transliteração:
Hoy Ashur, shevet appi… ve’hu lo ken yachshov.
Tradução literal:
“Ai da Assíria, vara da minha ira… mas ele não pensa assim.”
Exegese:
- שֵׁבֶט (shevet): “Vara” — instrumento de juízo.
- אַפִּי (appi): “Minha ira” — expressão da justiça divina.
- יַחְשֹׁב (yachshov): “Ele não pensa assim” — intenção humana distinta da divina.
📌 O texto de Isaías 10:5–7 oferece um exemplo paradigmático da doutrina das causas secundárias na providência divina. Deus declara: “Ai da Assíria, vara da minha ira... mas ele não pensa assim.” Essa afirmação revela uma estrutura de dupla agência: Deus utiliza a Assíria como instrumento legítimo de juízo contra Israel, mas o império age com motivações próprias e é responsabilizado por sua arrogância e crueldade.
- A Assíria é chamada de שֵׁבֶט אַפִּי (shevet appi) — “vara da minha ira” — uma metáfora que indica que o império é um instrumento disciplinador nas mãos de Deus.
- No entanto, o texto também afirma que וְהוּא לֹא כֵן יַחְשֹׁב (ve’hu lo ken yachshov) — “ele não pensa assim” — ou seja, o rei assírio não age com submissão ao propósito divino, mas com ambição expansionista e desprezo pelos povos conquistados.
📌 Essa distinção entre intenção divina e intenção humana é teologicamente crucial. Deus, como causa primeira, dirige a história com justiça e sabedoria. A Assíria, como causa secundária, age com liberdade e malícia, sendo por isso julgada. O mesmo ato — a invasão de Israel — possui dois agentes com propósitos distintos: Deus busca correção; a Assíria busca dominação.
Essa estrutura revela que:
- Deus pode usar agentes ímpios como instrumentos de sua providência, sem aprovar suas motivações.
- A instrumentalidade não implica inocência: a Assíria é responsabilizada por sua soberba (cf. Is 10:12).
- A providência divina é compatível com a liberdade humana: o império age voluntariamente, mas dentro dos limites do plano divino.
- O juízo de Deus é justo porque considera não apenas o ato, mas a intenção do agente.
Teologicamente, Isaías 10 reforça que causas secundárias são reais, livres e moralmente responsáveis. Deus não manipula os agentes como marionetes, mas os governa com sabedoria, usando até mesmo suas más intenções para cumprir propósitos justos — sem que isso torne Deus autor do mal.
3. Atos 2:23 — Decreto divino e culpa humana
Texto grego:
Τοῦτον τῇ ὡρισμένῃ βουλῇ καὶ προγνώσει τοῦ θεοῦ ἔκδοτον, διὰ χειρὸς ἀνόμων προσπήξαντες ἀνείλατε
Transliteração:
Touton tē hōrismenē boulē kai prognōsei tou Theou ekdoton, dia cheiros anomōn prospēxantes aneilate.
Tradução literal:
“A este, entregue pelo conselho determinado e presciência de Deus, vocês mataram, crucificando por mãos de ímpios.”
Exegese:
- ὡρισμένῃ βουλῇ (hōrismenē boulē): “Conselho determinado” — decreto soberano.
- διὰ χειρὸς ἀνόμων (dia cheiros anomōn): “Por mãos de ímpios” — agentes humanos como causas secundárias.
- προσπήξαντες (prospēxantes): “Crucificaram” — ação moralmente imputável.
📌 Neste versículo, Pedro declara que Jesus foi “entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus” e, ao mesmo tempo, “crucificado por mãos de ímpios”. Essa afirmação revela com precisão a doutrina da dupla causalidade: o evento da cruz tem origem no decreto eterno de Deus, mas é executado por agentes humanos que agem com malícia.
- O termo grego βουλῇ (boulē) indica um plano deliberado e soberano — não uma simples previsão, mas uma decisão eterna.
- A προγνώσει (prognōsei) de Deus não é apenas saber antecipado, mas conhecimento relacional e ativo.
- Os homens que crucificaram Jesus são chamados de ἀνόμων (anomōn) — “ímpios” — e são responsabilizados por sua ação.
📌 A cruz é o exemplo supremo de como Deus pode usar causas secundárias — ações humanas livres e pecaminosas — para cumprir um propósito redentor. Deus não causou o pecado dos crucificadores, mas usou sua malícia para realizar a salvação. Isso confirma que a providência divina não elimina a responsabilidade humana, mas a enquadra dentro de um plano maior.
4. Tiago 1:13 — Deus não é autor do mal
Texto grego:
Μὴ εἰπὼν ὅτι ἀπὸ θεοῦ πειράζομαι· ὁ γὰρ θεὸς ἀπείραστος ἐστιν κακῶν
Transliteração:
Mē eipōn hoti apo Theou peirazomai; ho gar Theos apeirastos estin kakōn.
Tradução literal:
“Ninguém diga: Sou tentado por Deus; pois Deus não é tentado pelo mal.”
Exegese:
- πειράζομαι (peirazomai): “Sou tentado” — incitação ao pecado.
- ἀπείραστος (apeirastos): “Inacessível à tentação” — natureza santa de Deus.
- κακῶν (kakōn): “Mal” — moral, não apenas sofrimento.
📌 Tiago estabelece um princípio teológico fundamental: “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e Ele mesmo a ninguém tenta.” Esse versículo é uma salvaguarda essencial na doutrina da providência.
- O verbo πειράζομαι (peirazomai) refere-se à tentação moral — incitação ao pecado.
- Deus é descrito como ἀπείραστος (apeirastos) — “inacessível à tentação” — ou seja, sua natureza santa o torna incapaz de provocar o mal.
- A tentação, portanto, não procede de Deus, mas da própria inclinação pecaminosa da criatura (cf. Tg 1:14).
📌 Esse texto reforça que, embora Deus sustente e governe todas as coisas, Ele não é causa eficiente do pecado. A responsabilidade moral pelo mal é da criatura. A doutrina das causas secundárias exige essa distinção: Deus concorre ao ser e à ação enquanto tais, mas não à deformação moral do ato.
5. Provérbios 16:9; 21:1 — Direção providencial
Pv 16:9 – Texto hebraico:
לֵב אָדָם יְחַשֵּׁב דַּרְכּוֹ וַיהוָה יָכִין צַעֲדוֹ
Transliteração:
Lev adam yechashév darkó; Adonai yachin tza’adó.
Tradução literal:
“O coração do homem planeja o seu caminho, mas o Senhor dirige seus passos.”
Pv 21:1 – Texto hebraico:
פַלְגֵי-מַיִם לֶב-מֶלֶךְ בְּיַד-יְהוָה עַל-כָּל-אֲשֶׁר יַחְפֹּץ יַטֶּנּוּ
Transliteração:
Palgei mayim lev melekh be’yad Adonai; al kol asher yachpotz yattennu.
Tradução literal:
“O coração do rei é como um rio nas mãos do Senhor; Ele o inclina para onde quer.”
📌 Esses dois versículos revelam como Deus dirige as decisões humanas sem anulá-las. Em Provérbios 16:9, lemos: “O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos.” Já em Provérbios 21:1: “O coração do rei é como um rio nas mãos do Senhor; Ele o inclina para onde quer.”
- O verbo hebraico יְחַשֵּׁב (yechashév) — “planeja” — indica a liberdade humana de traçar caminhos.
- יָכִין (yachin) — “dirige” ou “estabelece” — revela a ação soberana de Deus que confirma ou redireciona os passos.
- Em Pv 21:1, o coração do rei é comparado a um rio (פַלְגֵי-מַיִם, palgei mayim) — fluido, mas guiado pelas mãos do Senhor.
📌 Esses textos ilustram o concursus especial: Deus não apenas sustenta a ação humana, mas a orienta providencialmente. A liberdade humana é real, mas opera dentro dos limites e propósitos estabelecidos por Deus. Isso mostra que causas secundárias — como decisões políticas, escolhas pessoais e circunstâncias históricas — são meios legítimos pelos quais Deus realiza sua vontade.
6. Jó 1–2 — Hierarquia causal e permissão soberana
O prólogo do livro de Jó oferece uma das exposições mais ricas da providência divina operando por meio de causas secundárias múltiplas. A narrativa apresenta uma estrutura causal complexa, onde Deus, Satanás, agentes humanos e fenômenos naturais interagem sob soberania divina.
Camadas causais identificadas:
- Causas secundárias humanas:
- Os sabeus e caldeus invadem e saqueiam os bens de Jó (Jó 1:15, 17).
- A ação é moralmente imputável aos invasores, que agem por ganância e violência.
- Causas secundárias naturais:
- “Fogo de Deus” que consome ovelhas e servos (Jó 1:16).
- “Grande vento” que derruba a casa e mata os filhos (Jó 1:19).
- Fenômenos naturais são usados como instrumentos de juízo, mas não operam de forma autônoma.
- Causa pessoal espiritual:
- Satanás aparece como acusador e instigador do sofrimento de Jó (Jó 1:6–12; 2:1–6).
- Ele propõe testes e recebe permissão limitada de Deus para agir.
- Causa primeira divina:
- Deus permite, limita e dirige todo o processo (Jó 1:12; 2:6).
- Ele não causa diretamente o mal, mas o governa com sabedoria e justiça.
Exegese técnica:
- שׁוּט (shut) — “percorrer” (Jó 1:7):
- Satanás “percorre” a terra, indicando atividade investigativa e provocadora.
- נָתַן (natan) — “entregar” (Jó 1:12):
- Deus “entrega” tudo o que Jó possui nas mãos de Satanás, mas com limites claros.
- שָׁמַר (shamar) — “guardar” (Jó 2:6):
- Deus ordena: “Guarda-lhe a vida”, estabelecendo fronteiras intransponíveis à ação do mal.
📌 A narrativa de Jó demonstra que causas secundárias operam sob a direção da causa primeira. Deus não é autor do mal, mas soberanamente o permite, limita e redime. A dor de Jó não é punição, mas ocasião de revelação, maturidade e testemunho.
🛠️ IV. Implicações teológicas e pastorais
1. Meios como graça
- Deus age por meios ordinários: medicina, justiça, trabalho, conselhos.
- Negar os meios é negar a providência ordinária.
- A oração e a ação caminham juntas.
2. Responsabilidade e arrependimento
- Causas secundárias sustentam a seriedade do pecado.
- O mal é nosso; o bem é de Deus.
- Disciplina, conversão e reparação são exigências morais reais.
3. Esperança no sofrimento
- Deus redireciona causas secundárias ao bem (Rm 8:28).
- A cruz é o maior exemplo: o pior mal resultou na maior salvação.
- O sofrimento tem prazo de validade escatológico (Ap 21:4).
4. Consolo ativo
- Deus está próximo dos quebrantados (Sl 34:18).
- A providência não é fria nem distante.
- O consolo recebido se torna ministério (2Co 1:3–4).
V. Testemunho reformado e patrístico
A doutrina das causas secundárias é amplamente afirmada na tradição ortodoxa, sendo também antecipada por diversos pais da Igreja. A seguir, apresentamos uma síntese das principais contribuições teológicas.
1- Reformadores e teólogos reformados
João Calvino ensina que Deus “governa todas as coisas por sua providência” e que até os atos dos ímpios são usados como instrumentos para cumprir os desígnios divinos, sem que Deus seja autor do pecado. Ele afirma: “Deus usa os ímpios como instrumentos de sua justiça, mas não os aprova moralmente”¹. Essa distinção entre causa primeira (Deus) e causas secundárias (criaturas) é central em sua teologia da providência.
A Confissão de Fé de Westminster, no capítulo V, declara que “Deus, na sua providência, ordena todas as coisas para a execução de seus decretos, usando causas secundárias, livres, necessárias ou contingentes”². A confissão também afirma que Deus não violenta a vontade das criaturas nem é autor do pecado, preservando a compatibilidade entre soberania divina e responsabilidade humana.
Francisco Turretin, em sua obra clássica Institutes of Elenctic Theology, distingue entre causa primeira e causas secundárias, e entre concursus geral (sustentação do ser) e especial (direção dos atos). Ele afirma que a permissão divina é um “ato positivo de não impedir” e que o mal é “deficiência da causa criada”³. Turretin reforça que Deus não causa o mal, mas o permite com finalidade justa e limitada.
Herman Bavinck rejeita o ocasionalismo — que nega a eficácia das causas secundárias — e afirma que “a ordem criada tem integridade própria”⁴. Para ele, Deus governa por leis, história e agentes reais, e as causas secundárias expressam a bondade da criação e a sabedoria do governo divino.
Louis Berkhof, em sua Systematic Theology, sistematiza a providência em três atos: preservação, concurso e governo. Ele afirma que “as causas secundárias sustentam a vida moral e a responsabilidade humana”⁵, sendo compatíveis com a soberania de Deus.
2- Pais da Igreja
Agostinho de Hipona, em Cidade de Deus e Enchiridion, ensina que Deus permite o mal para bens maiores, e que o mal é “privação do bem”, não substância. Ele afirma: “Deus é bom e justo; o mal não procede dele, mas é permitido por ele para que o bem maior se manifeste”⁶. A estrutura de dupla agência — Deus como causa justa e o homem como agente culpável — é evidente em sua teologia.
Ireneu de Lyon, em Contra as Heresias, apresenta uma visão pedagógica da providência. Para ele, o mundo é uma arena de maturidade espiritual (soul-making), e Deus ordena a história para formar os santos⁷. O mal, embora real, não destrona o bem final, pois é subordinado ao plano redentor.
João Crisóstomo, em suas Homilias sobre Romanos, ensina que Deus transforma perseguições em testemunho. Ele afirma que “os sofrimentos dos justos são ocasião de graça, pois Deus os usa para edificar a Igreja e manifestar sua glória”⁸. A providência divina redime causas secundárias más para fins santos.
✅ VI. Conclusão
A doutrina das causas secundárias é uma joia da teologia cristã e nos fornece os elementos para compreender o “problema do mal”. Para isso, é essencial começar com o conceito de pecado original — a queda de Adão, que introduziu o mal, a corrupção e a morte na criação. Desde então, toda a humanidade participa dessa condição caída (Rm 5:12), e o mundo, embora criado bom, tornou-se palco de sofrimento, injustiça e desordem. O mal, portanto, não é uma criação divina, mas uma distorção da bondade original, causada pela rebelião da criatura.
Nesse contexto, a doutrina das causas secundárias oferece uma resposta profundamente bíblica e teologicamente refinada ao dilema: como pode um Deus absolutamente bom e soberano permitir o mal?
Ela protege simultaneamente quatro pilares essenciais da fé:
- 🕊 A santidade de Deus — Deus não é autor do pecado. Tiago 1:13 afirma que Ele não tenta ninguém ao mal. A doutrina mostra que Deus pode permitir o mal sem ser moralmente responsável por ele, mantendo sua pureza absoluta.
- 🌍 A realidade da criação — O mundo é real, dinâmico, e os agentes criados — humanos e espirituais — têm liberdade genuína. Jó 1–2 mostra Satanás agindo, mas sempre sob os limites da permissão divina. Deus governa sem anular a estrutura da criação.
- 🙋♂️ A responsabilidade humana — Atos 2:23 revela que os homens crucificaram Jesus por sua própria maldade, mesmo que isso tenha ocorrido “segundo o determinado conselho de Deus”. O mal humano é real e punível, mas não escapa ao plano soberano.
- 🔒 A certeza da providência — Gênesis 50:20 e Romanos 8:28 mostram que Deus transforma o mal em bem. Ele não apenas permite, mas redime. O mal não tem a palavra final — Deus a tem.
Biblicamente ancorada e teologicamente lapidada na tradição reformada — com Calvino articulando entre causa primeira e causas secundárias , Westminster afirmando que Deus ordena tudo sem violar a liberdade das criaturas, Turretin refinando os modos de causalidade, e Bavinck integrando tudo numa visão orgânica da providência — essa doutrina encontra eco nos pais da Igreja. Agostinho já distinguia entre o querer permissivo de Deus e o querer ativo; Ireneu via o mal como ocasião para o bem maior da redenção; Crisóstomo exaltava a providência mesmo em meio à perseguição.
📜 Aqui reside a explicação para o problema do mal: Deus governa todas as coisas por meio de causas secundárias. Ele é o autor da história, mas não do pecado. Ele usa até os atos maus das criaturas para cumprir seus propósitos santos, sem violar sua santidade nem a liberdade das criaturas. O mal é um intruso real, mas não um soberano. Ele é um instrumento, não um fim.
Na cruz, vemos o ápice dessa verdade: o maior mal — a morte do Justo — tornou-se o maior bem — a salvação dos injustos. A cruz não é apenas a resposta ao pecado — é a resposta ao problema do mal. E na nova criação, veremos que todas as causas, mesmo as mais sombrias, foram conduzidas por mãos santas para um fim glorioso.
Essa doutrina não resolve o mistério do mal com simplismo, mas o enquadra dentro da narrativa maior da redenção. Ela não elimina o sofrimento, mas o ilumina com esperança. E nos convida a confiar, mesmo quando não entendemos — pois o Deus que governa por causas secundárias é o mesmo que sofreu por nós, e que nos conduz, por meio delas, ao bem maior revelado na cruz e consumado na nova criação.
Referências
1. CALVINO, João. Institutas da Religião Cristã. Trad. João Thomaz de Aquino. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. Livro I, cap. XVI.
2. ASSEMBLEIA DE WESTMINSTER. Confissão de Fé de Westminster. Trad. João Paulo Thomaz de Aquino. São Paulo: Editora Os Puritanos, 2006. Capítulo V.
3. TURRETIN, Francis. Institutes of Elenctic Theology. Trad. George Musgrave Giger. Ed. James T. Dennison Jr. Phillipsburg: P&R Publishing, 1992. Vol. 1, p. 206–215.
4. BAVINCK, Herman. Reformed Dogmatics. Trad. John Bolt. Grand Rapids: Baker Academic, 2004. Vol. 2, p. 598–610.
5. BERKHOF, Louis. Systematic Theology. Grand Rapids: Eerdmans, 1996. P. 166–180
6. AGOSTINHO. Cidade de Deus. Trad. J. Oliveira. São Paulo: Vozes, 1999. Livro XI, cap. XVII. AGOSTINHO. Enchiridion. Trad. J. Oliveira. São Paulo: Paulus, 2002. §11–13.
7. IRENEU DE LYON. Contra as Heresias. Trad. Carlos Martins Nabeto. Petrópolis: Vozes, 2005. Livro IV, cap. XXXVII.
8. CRISÓSTOMO, João. Homilias sobre Romanos. Trad. Mário Otávio. São Paulo: Paulus, 2008. Homilia V.






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